Entrevista com José Augusto Gluilhon Albuquerque
Professor de Relações Internacionais da USP
De um lado, o governo atarantado para explicar o dossiê. De outro, uma oposição em estado de catalepsia. Enquanto isso, afirma o cientista político, o presidente avança.
O DOSSIÊ: "É uma manobra diversionista do governo. Abre uma frente de batalha e ataca outra coisa".
Mônica Manir
“As pessoas sofrem se você as convida para algo medíocre”. A frase-pérola do governador Franco Montoro ressoou na cabeça do professor Guilhon quando ele se viu convidado, para não dizer obrigado, a refletir sobre o imbróglio do dossiê da Casa Civil relacionando os gastos da família FHC e de tucanos. Pareceu-lhe medíocre a mobilização de toda a liderança política em torno do documento, quando havia, na mesma semana, uma discussão bem mais premente: o terceiro mandato para o presidente Lula.
Organizador do livro O Legado de Franco Montoro, lançado pela Fundação Memorial da América Latina com a Imprensa Oficial do Estado, José Augusto Guilhon Albuquerque entende que José Alencar não falou ao vento quando afirmou, na terça-feira, ser desejo do povo que Lula fique mais tempo no poder. “É a segunda fase do projeto de continuísmo”, diz. A primeira, ainda em processo, seria a fritura dos possíveis candidatos à sucessão. José Dirceu e Palocci afundaram-se em escândalos, enquanto Dilma Rousseff emerge como pode do conjunto de planilhas que vazou dos computadores de sua Casa. Nesta segunda fase, antecipa o professor, a idéia é mostrar que o povo na rua estaria disposto a ir contra a Lei Maior pela reeleição de Lula. “Jogar a rua contra o Congresso é antidemocrático porque a nossa Constituição é representativa”. E a oposição? “Está míope, letárgica, ofuscada pelo brilho de Lula”. Em estado de catalepsia, enfim.
A idéia do terceiro mandato, pregada pelo deputado Devanir Ribeiro (PT-SP) e anunciada pelo vice, José Alencar, pode vingar?
O terceiro mandato vem se desenhando desde a eleição de 2006, desde o momento em que o presidente Lula verificou que podia mobilizar apoio independentemente do desempenho do governo. O fato de ter saído mais ou menos incólume do escândalo do mensalão, de ampliar o apoio popular e de vencer as eleições deixou o caminho livre para a idéia do terceiro mandato. Para isso, contribuiu o fato de que as principais lideranças petistas, especialmente as de peso, como o José Dirceu, o Palocci, o Genoino, terem sido afastadas do jogo sucessório pela crise do mensalão. O que antes poderia ser um projeto de poder do PT se mostrou impossível de realizar senão como projeto de poder de Lula. A partir daí, o presidente passou a apostar todas as cartas na possibilidade do terceiro mandato. O que quero dizer com isso? Não há outra solução para o presidente Lula.
Não existe perspectiva para ele fora da Presidência?
Para o presidente Lula, o futuro político é incompatível com a entrega do poder. De um lado, ele não vê mais nada no PT que tenha a ver com ele. Não há grande diferença para o presidente entre o PT, o partido do vice-presidente (PMR), o PMDB, o PP, todos esses da base governista. Lula não vai ser senador, não vai ser governador, não vai ser prefeito, não gosta de nada disso. Não é uma pessoa que possa ter profissão própria, mesmo porque a profissão de torneiro mecânico não existe mais. E ainda terá um número desconhecido de questões judiciais que virão à tona com a saída dele e que hoje estão seguras porque todos os mecanismos de polícia e uma parte da Justiça estão travados. O que ele tem feito nos últimos 20 anos? Campanha política, viagens pelo Brasil, discursos
Em visita à Fundação Universidade Federal do Rio Grande do Norte na quinta-feira, o presidente disse que depois de sair do governo cursará uma universidade aberta, algo que não teve condição de fazer antes.
O Vicentinho foi dirigente sindical até mais tempo do que ele, foi eleito deputado federal e fez uma universidade fechada, ou seja, freqüentou as aulas. Enquanto Lula foi líder sindical, deputado federal e nos 20 anos em que ficou sem nenhuma função específica, não achou compatível cursar a universidade. É importante lembrar que diploma universitário não é um direito, é um resultado de desempenho.
Ao dizer que os brasileiros desejem Lula por mais tempo no poder, José Alencar pecou por incontinência verbal? Ou teria dito isso com o aval do presidente?
Acho que essa frase faz parte da segunda fase. Entendo que há um processo, desde a eleição passada, de queima de navios. É a história dos conquistadores espanhóis da América que, para poder levar seus comandados até o fim, queimaram suas embarcações. Ou seja, suprimiram a possibilidade de todo mundo recuar. Eu acho que o presidente Lula deu início a um processo de queima de navios. Qual foi a primeira fase desse processo? Mostrar que não existe sucessor aceitável para ele, que não existem candidaturas viáveis para substituí-lo.
Isso quer dizer que qualquer nome que ele anunciar como substituto vai acabar se queimando?
É o que tem ocorrido. Se houvesse uma tentativa de fato de começar um processo sucessório, jamais traria esse debate à tona deliberadamente no primeiro ano de governo. É evidente. Um presidente que esteja no início do mandato e já tenha um sucessor mais ou menos pensado não governa mais. Quando deixa o debate correr e continua governando é porque controla esse processo, e com um objetivo claro: levantar alguns nomes para mostrar para o PT, para os aliados, para o público petista que não existe alternativa à candidatura Lula.
Foi o que aconteceu com a ministra Dilma Rousseff?
Foi o que aconteceu, na primeira semana, com o nome de Ciro Gomes, que levou uma cacetada e ficou quieto. Depois, Lula começou a preparar Dilma Rousseff de uma maneira muito ostensiva, isso porque havia dito que tinha de ser uma coisa sigilosa. A ministra Dilma tem uma série de qualidades, pelo menos todos lhe atribuem qualidades, mas os observadores da política sabem que não é uma boa candidata. Uma pessoa que jamais disputou voto vai direto para a Presidência da República? O lançamento dela foi proposital. O nome não decola, enfim. Essa é a primeira fase: mostrar que não existe alternativa. A segunda é dizer: “Bom, o povo não aceita outra opção”. Essa segunda fase começou com o José Alencar. É algo que, até o momento, tem sido mais ou menos contido: o Lula, com a sua capacidade carismática, pôr o povo na rua para ir contra a Constituição. E isso o Alencar acabou de anunciar. Não importa a Constituição, importa o que o povo quer. É muito grave. Ele está chamando para um golpe.
Um golpe em que sentido?
Uma mudança constitucional das regras do jogo é legítima desde que siga certo ritual. Mas, na nossa cultura política, normalmente se considera que regras eleitorais não se mudam no meio do campeonato. É considerado golpe.
Fernando Henrique Cardoso não fez isso quando conseguiu a aprovação da emenda constitucional que criou a reeleição para cargos executivos?
No governo FHC, quando foi feita a mudança constitucional que permitiu a ele se candidatar, havia certo consenso de que aquilo seria um golpe, mas o processo seguiu os trâmites no Congresso. O que o vice está dizendo é o seguinte: temos de mudar essa regra, e é povo quem vai decidir, não o Congresso.
Um plebiscito sobre essa questão seria antidemocrático?
O que caracteriza o fator antidemocrático não é o plebiscito, mas o contexto em que é usado. Um plebiscito que seja usado sistematicamente para jogar a rua contra o Congresso é antidemocrático porque a nossa Constituição é representativa. Ela não é de participação direta, em que o povo pode, diretamente e a qualquer momento, mudar as regras. Quem muda as regras é o Congresso. Existem discussões dentro do PT e dos setores da esquerda sobre ampliar para uma democracia participativa, que é o modelo bolivariano. Quem acha que o modelo bolivariano é democrático acha o plebiscito democrático.
Como a oposição tem se comportado nesse cenário?
Eu só vejo uma figura agindo nessa direção, que é o Fernando Henrique. É a única grande liderança na oposição que tem alertado contra esse tipo de situação e de maneira bastante contundente, às vezes. Tem sido muito criticado por isso, inclusive na oposição, como, se pelo fato de ser ex-presidente, não devesse se ocupar da questão democrática, das questões institucionais, etc. De resto, a oposição se encontra numa espécie de catalepsia. Ela está imantada, ofuscada pelo brilho pessoal do Lula. E a oposição, de maneira geral, acha Lula imbatível.
A alta popularidade do presidente contribui para essa catalepsia?
Ela contribui para a letargia da oposição, para a sensação de imbatibilidade, de invencibilidade do presidente. Eu acho que essa popularidade é mais frágil do que se pensa. É popularidade, e não total identificação eleitoral. Se você aparecer todos os dias no Jornal Nacional, 99% das pessoas que forem perguntadas durante a pesquisa conhecem você. Isso não quer dizer que vão votar
O que a oposição não está enxergando?
Não está enxergando o essencial. Esse dossiê sobre gastos sigilosos do governo FHC, por exemplo, é uma manobra diversionista do governo. Ele abre uma aparente frente de batalha para concentrar a atenção do inimigo, mas está atacando outra coisa. Tudo que está no dossiê é mínimo, são coisas explicáveis, mais ou menos normais. Não creio que haja intenção do governo de levar o FHC, a Ruth Cardoso e qualquer dos outros citados ao tribunal. O que ele quer fazer? É o terceiro mandato em jogo, novamente.
Qual é a relação de uma coisa com a outra?
Nenhuma, justamente. Querem que a oposição fique brigando em torno dos cartões corporativos e em torno do dossiê, que fique discutindo por essas mixarias. E o governo tem uma maioria tão sólida na CPI que nada passa. Ele esvaziou todas as CPIs até agora, algumas delas extremamente bem calçadas. Nessa guerra sem trégua de dossiês e CPIs, quem perde é a democracia brasileira, porque o descrédito das instituições só cresce com cada CPI que se cria de maneira irresponsável. Isso aumenta muito o desprezo com que o povo brasileiro encara as instituições. O Congresso também perde credibilidade. A batalha política, agora, é pela sobrevivência dessas instituições, que é incompatível com o continuísmo do Lula.
A disputa entre o PSDB e o DEM pela Prefeitura de São Paulo também é sinal de miopia da oposição?
A Prefeitura de São Paulo é essencial se vista com os olhos de 2010, com os olhos da continuidade democrática. Se visto apenas como uma questão entre o PSDB e os democratas, ou entre o PSDB e o PT, o enfoque está equivocado. Fazer uma disputa eleitoral
Há solução para esse impasse?
A única possibilidade é se houver concessões de lado a lado, mais entre o PSDB e o DEM do que entre o Alckmin e o Kassab, sem esquecer um fato: existe um prefeito que está exercendo o cargo e, portanto, existe a expectativa e quase o dever moral de ele se recandidatar. O Alckmin não é obrigado a ser candidato. O Kassab é. Ele precisa de uma desculpa moral forte, além de benefícios pessoais em termos de candidatura e acordos. A política se faz por meio de concessões. O que tenho observado é que isso não tem ocorrido.
De onde vem essa dificuldade para ceder?
Vem dessa letargia, desse ofuscamento, que leva as pessoas a achar que o nome do candidato que vai concorrer pela situação é mais importante do que a sucessão do Lula. Tem outra coisa: a oposição hoje é a cara do PSDB. E o PSDB, quando foi criado, o fez com dissidências regionais, sobretudo do PMDB, mas em parte também do PFL e de pequenos partidos. A eleição de Fernando Henrique ajudou a nacionalizar o PSDB, mas ele continuou como uma federação de caciques regionais. Eles se entendem, se respeitam, mas não somam. O PSDB precisa decidir se vai ser um partido ou se vai continuar sendo uma federação de caciques. Vem daí a hipótese de que o Alckmin seja obrigado a ser candidato e que essa seja a única solução para o PSDB.
Em Belo Horizonte está em jogo um esquema bastante interessante de fortalecimento do governo
Aécio Neves pode ser uma figura ameaçadora ao terceiro mandato do presidente?
De jeito nenhum. Acho o contrário. Lula vê Aécio como um bom instrumento para manter essa letargia no PSDB.
Como assim?
Ao acenar com seu apoio ao governador de Minas, o presidente embaralha as cartas da oposição. Porque a oposição é PSDB e DEM. Ao indicar um candidato que deveria ser de oposição, mas vem pelo PMDB e pelo PSDB, ele a enfraquece. Serra é o candidato mais forte neste momento. Ele não quer enfraquecer o Serra, mas a possibilidade de um candidato peessedebista unitário.
O senhor citou o PMDB. Qual é a força do partido hoje?
Ele é fraco e não é. É fraco eleitoralmente para presidente. Como está cindido, e assim vai continuar, se o partido tem um candidato, a metade dele é contra. Ao mesmo tempo, em termos de governadores, é mais forte. E tem mais peso no governo Lula do que o PT. O PT atrapalha, o PMDB é um facilitador. Já predisseram a explosão do PMDB centenas de vezes. Isso não é politicamente positivo, mas o fato de estar em lugar nenhum e em toda parte faz com que sempre tenha alguém para entrar no governo, sobretudo no cargo de ministro. Vice, para eles, não é tão importante.
A disputa entre o PT e o PSDB é uma disputa fratricida?
Eles não são irmãos; primos, talvez. Historicamente vêm da mesma base da oposição. Mas o PSDB é um partido de centro, moderado em termos sociais, econômicos e políticos, quer fazer a mudança, mas dentro da ordem. O PT é um partido de esquerda no sentido de que quer apressar processos, quer o movimento, ainda que isso possa prejudicar essa ordem.
O senhor organizou um livro sobre Franco Montoro, eleito governador de São Paulo pelo PMDB em 1982, na primeira eleição direta para o cargo após 20 anos. Montoro também foi presidente nacional do PSDB. Que legado ele deixou?
Acho que deixou o legado da inteireza, da integridade política e moral. Integridade com relação às suas convicções. Não era uma pessoa principista, que acreditava naquela idéia e levava adiante, o que quer que acontecesse. Eram convicções de como as coisas deviam funcionar na política, independentemente de isso resultar em benefício ou em inconveniência para ele. Achava fundamental restaurar a democracia e derrotar o regime militar e, para isso, abriu mão de sua candidatura, que era uma das naturais como grande comandante da campanha das Diretas. Convenceu o Ulysses, também candidato, que o melhor nome era o de Tancredo. Na época, os auxiliares dele acharam aquilo uma loucura. Como ia desistir de ser candidato com tanta popularidade ? Isso exemplifica. Você está visando a uma finalidade, tem uma convicção e age em função dela.
Outra marca registrada do governo Montoro era a busca por pessoas diferenciadas para a formação de sua equipe. Os governos hoje se preocupam com uma equipe de excelência?
Acho que os governos, de certa forma, têm essa preocupação, mas o nosso sistema eleitoral, baseado em indicações individuais, leva a um isolamento dos políticos. Cada político é seu próprio partido. Isso faz com que as lideranças se habituem a uma relação de mão única. Não têm companheiros, têm seguidores. Leva à escolha de equipes cuja principal motivação é a submissão, e não a capacidade administrativa.
Mas o sistema eleitoral na época do governador Montoro era o mesmo de hoje.
Era, mas quero dizer que esse sistema eleitoral favorece um tipo de liderança oposta à do Montoro. Era preciso uma pessoa extraordinária do ponto de vista de sua formação intelectual e política para romper com essa tendência. Se você observar a formação de sua equipe administrativa, muita gente ele conhecia pouco ou não conhecia, e a maioria tinha mais capacidade intelectual e de conhecimento do que ele em certas áreas. Montoro convivia com isso, ele se orgulhava de ter pessoas no governo que sabiam mais do que ele, enquanto se verifica o contrário hoje, quando se vê a banalidade em governos e ministérios. Francamente, é incrível.
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