(Nivaldo Cordeiro -19/07/2008)
“Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.”
Ferreira Gullar, poema Traduzir-se
É preciso lançar alguma luz sobre o noticiário dos últimos dias, que pode parecer confuso ao leitor desavisado. Como entender o fato de o presidente Lula mandar dar um breque no delegado Protógenes Queiroz no caso Daniel Dantas, a ponto de demiti-lo da função, se toda a gente sabe que a maneira de agir da Polícia Federal no caso é a recomendada pelo partido governante? Afinal, Lula e o PT são ou não favoráveis ao rito sumário, à margem da lei, para linchar os supostos delinqüentes ricos?
Obviamente que a resposta à última questão é positiva, com as qualificações devidas. Por menos que o PT queira e goste ainda estão vigentes uma ordem constitucional e o Estado de Direito. Pior, temos eleições sucessivas, uma delas, importante, ainda neste ano, e o eleitorado, especialmente aquele da classe média residente
Temos aqui a razão tática para a ordem de retirar o delegado xiita do inquérito, ele que ignorou todos os ritos, todos os direitos fundamentais, todos os fundamento do Direito e partiu para o justiçamento sumário de um dos maiores financiadores da oposição política em tempos idos e atualmente um grande financiador de seus próprios algozes. O fato é que a truculência dos esbirros da Polícia Federal repugnou a opinião pública, que não partilha, com o PT, dessa plutofobia. O recuo tinha que ser feito sob pena de se comprometer as chances eleitorais de Marta Suplicy para a Prefeitura de São Paulo, já queimada com a classe média desde sua desastrada declaração “relaxa e goza”, quando da recente crise dos aeroportos, bem como pelo fatídico desastre da queda do avião da TAM, nos arredores do Aeroporto de Congonhas.
Há um claro conflito entre a ética (que má palavra!) revolucionária e a ética eleitoral. Lula e o alto-comando petista, como sempre, praticaram a realpolitik e mandaram o delegado Protógenes (que nome!) para a escola, dando um tempo no seu afã persecutório à plutocracia nacional. Então, caro leitor, perceba que a canalhice de Lula é maior ainda do que a canalhice dos meganhas da PF, ajudados pelos juízes justiceiros seguidores de Rousseau e Marx (veja-se meu artigo anterior sobre o assunto). E aqui nota-se a lógica inexorável da revolução em processo, a mesma lógica que se viu em toda parte onde ela aconteceu: é preciso que haja o “centralismo democrático”, é imperativo que os quadros obedeçam ao comando da cúpula.
Ora, o delegado Protógenes, como muitos dos companheiros de viagem dos revolucionários, pensam estar fazendo o melhor quando agem de acordo com as leis produzidas ao longo de décadas de ação gramsciana, que produziu essa monstruosidade que se tornou nosso ordenamento jurídico. Uma parte desse ordenamento consagra a tradição das liberdades democráticas, outra parte é pura concepção leninista (“Uma parte de mim/pesa, pondera/outra parte/delira” Ferreira Gullar). Esse Frankenstein jurídico tem sido usado a bel prazer dos esbirros policiais, com a aprovação da cúpula governamental, mas agora que a coisa transbordou para a opinião pública e pode afetar as eleições vimos a contradição brotar, ela que não é filosófica, mas de mera forma de agir.
Esses companheiros de viagem que integram as carreiras de Estado têm as autonomias de lei e não respondem a nenhum comando centralizado, se não quiserem. Não são quadros do partido, mas do Estado, de modo que são controláveis apenas até certo ponto e marcham juntos apenas naquilo em que suas idéias deformadas se confundem com o programa do partido. Quando o grau de xiitismo individual – a famosa porra-louquice – extrapola contra os interesses estratégicos, o companheiro tem que ser sacrificado. O sacrifício, no caso, é ainda metafórico entre nós, mas os exemplos históricos testemunham que podem vir a ser literais. Protógenes, te cuida, oh meu!
Observar esse processo é interessante porque, cada vez mais, a tentação do epílogo totalitário se coloca como única alternativa para que o comando partidário tenha o controle total. Os funcionários do Estado teriam que ser, antes de tudo, funcionários do partido, sujeitos à disciplina revolucionária. Para isso, a ordem legal teria que ser suspensa e não se fará algo assim no Brasil sem forte resistência. O tempo ainda não está maduro para um gesto de forças dessa envergadura. Se e quando vai acontecer é uma questão em aberto, mas a lógica é inexorável, quase uma determinação histórica. Ela leva a crer que isso algum dia virá. Os revolucionários estão cada vez mais confiantes e cada vez menos dispostos a ensaiar a chatíssima peça eleitoral.
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