quinta-feira, agosto 14, 2008

De Boas Intenções o Inferno Anda Cheio

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Ney Vilela

Membro do Instituto Cultural de Artes

Cênicas do Estadode São Paulo

A Revolução de 1930, ao propor civilizar o Brasil, imaginou-o, a um só tempo, culto e educado. E esta associação, educação “e” cultura, produziu um ministério. De fato, educação “e” cultura pareciam combinar tanto quanto queijo com goiabada.

Ao tempo do regime militar, a cultura era empurrada para vinculações estranhas com o turismo e os esportes; mas também aí estava subjacente um simulacro da democracia ateniense que via como uma coisa só a formação do atleta, do guerreiro e do cidadão, indicando uma quase impossibilidade de se pensar a autonomia cultural. É claro que a cultura não rima com regimes fortes e podemos indagar, sob a democracia formal na qual vivemos: qual o país culto que vislumbramos?

O Estado decidiu responder a esta pergunta criando um Ministério da Cultura. Sua simples existência foi celebrada pelos artistas e intelectuais como um reconhecimento (tardio, não importa...) da relevância da atividade. Assim, caberia ao Estado dizer para a sociedade “o que é cultura” e, na medida da habilidade dos seus dirigentes, fazê-lo com o aval da sua parcela culta; isto é, conduzir o barco da cultura no mar da incultura que cerca a Escola de Samba Unidos do Pau-Brasil.

O problema é que um projeto cultural custa dinheiro para se realizar. Em meio a tantas carências (educação, saúde, etc.) é natural que a cultura, agora como atividade do Estado, se saia mal no conflito distributivo permanente que é o orçamento público: nunca consegue ultrapassar a casa do zero-vírgula-qualquer-coisa do gasto anual da União. Também, pudera, são tão poucos os soldados do exército cultural, ainda que muito barulhentos e sempre prontos a protestar contra o “descaso cultural” dos governos.

Os intelectuais brasileiros sentiam-se abandonados e desalentados, diante das ridículas dotações que o Estado designava para as atividades culturais. Isto explica o entusiasmo e esperança, quando surgiu a Lei Rouanet. Parece lógico supor que se o Estado não pode irrigar o fazer cultural com recursos suficientes, que terceirize então – para o Mercado – a obrigação que parecia indelegável ao se encerrar a Assembléia Nacional Constituinte lá pelos idos de 1988.

Reproduzimos, aqui, uma observação do intelectual Carlos Roberto Dória: “Ora, num país onde as leis costumam “pegar” ou “não pegar”, a Lei Rouanet inaugura uma nova modalidade: a das leis que “pegam” e fracassam. Ela não fracassou por falta de adesão, mas por excesso de adesão interesseira, contemplando apenas a perspectiva dos ganhos econômico-financeiros que promete”.

Vamos deixar claro qual é o problema: como no “Fausto” de Goethe, o mercado exige a alma da cultura em troca dos recursos para o seu acontecer. A troca é clara: o Estado se abstém de considerar o mérito cultural do produto a ser financiado pela Lei Rouanet, sob a alegação de afastar o fantasma do “dirigismo cultural” e se entrega de corpo e alma aos critérios culturais dos empresários que possuem créditos tributários capazes de irrigar a produção cultural.

Se for natural que o cidadão que tem dinheiro no bolso assista ao filme que deseje, compre o CD da sua preferência e assim por diante; também será natural também que o empresário faça o mesmo - ouvindo, no máximo, o seu departamento de marketing antes de decidir. Se antes cabia ao Estado definir o que é cultura, agora cabe ao dinheiro fazê-lo. Ora, ao se entregar recursos públicos (renúncia fiscal) ao mercado para que ele priorize o que fazer, os objetivos públicos passam também a se subordinar à lógica das vantagens empresariais.

O Estado Brasileiro, ao conferir ao mercado o papel de organizador de uma atividade pública, deveria intervir sempre e quando a democracia fosse violada pela exclusão dos cidadãos da condição de consumidores e beneficiários finais dos recursos públicos. E isto não ocorre.

A lei Rouanet existe para que Itaú, Bradesco e Banco do Brasil possam investir neles mesmos, fazer seus centros culturais e pagar seus ascensoristas. Instituições como o Itaú Cultural, o BB Cultural, o Instituto Moreira Salles nem sequer precisam estabelecer critérios “objetivos” de seleção. Aprovam seus planos “consolidados” junto ao Ministério e isso basta para que se apropriem dos recursos captados junto às empresas do conglomerado. Assim, a “neutralidade” do Ministério face ao conteúdo e relevância dos projetos transforma-se num vale-tudo.

Com a criação das leis de incentivo fiscal à cultura, o Estado brasileiro passou a atuar apenas como facilitador da ação cultural. Entenda-se: o governo federal se estruturou apenas para facilitar que portadores de direitos de saque sobre o Tesouro da União, por força da renúncia fiscal, pudessem agir no mercado como compradores de bens e serviços culturais segundo os seus interesses publicitários, promovendo a subordinação do fazer cultural ao marketing institucional das corporações. No final do processo, uma prestação de contas formal encerra o controle público, e é só.

Várias foram as conseqüências desse laissez-faire cultural. A primeira foi substituir o artista, o criador de cultura, por empresários culturais na apropriação dos recursos públicos. Não é mais quem escreve um livro, quem canta, quem compõe, quem toca, quem pinta, o beneficiário imediato dos recursos financeiros: é uma empresa ou uma associação, uma pessoa jurídica constituída com o precípuo objetivo de gerenciar a produção cultural como um negócio.

A segunda conseqüência foi a própria subordinação dos empresários culturais, que substituíram os artistas, ao gosto médio dos dirigentes das corporações, abandonando-se a cultura de matiz experimental, a arte de vanguarda e contestadora.

Terceira conseqüência: como os ganhos dos produtores não dependem do mercado (isto é, da distribuição e do consumo) e são garantidos pelos direitos de saque das corporações contra a Receita (incentivos fiscais), os orçamentos de produção incharam enormemente.

Essa é a perversa forma de administrar a cultura que tem aprofundado ainda mais o fosso das desigualdades entre os brasileiros por não contar, no Estado, com os mecanismos de correção da ação cega do mercado. Na medida em que a política federal entregou para o mercado o crescimento dos investimentos públicos em cultura, ela vem estimulando práticas de discriminação de acesso através de projetos que optam pela platéia vazia, pelo encalhe do estoque ou pela distribuição dirigida para públicos seletíssimos, ao invés de estimular e obrigar a distribuição, a preços populares ou gratuitos, do produto cultural resultante do financiamento total ou majoritariamente público.

As intenções da Lei Rouanet eram boas. O resultado, infelizmente, é infernal.

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