sexta-feira, agosto 15, 2008

DOM PEDRO II IMPERADOR CINZENTO DE UMA TERRA DE SOL TROPICAL

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Um Menino sem Infância


Nilo Pereira

Em 1925 celebrava-se em Pernambuco o centenário do nascimento de D. Pedro II. O ponto culminante dessas comemorações foi a conferência que Gilberto Freyre pronunciou na Biblioteca Pública, o lugar mais apropriado para evocar um Imperador que viveu entre livros e neles encontrou o seu universo.

Gilberto Freyre tinha, então, 25 anos de idade. Suas conferência renova os estilos de época. Falava-se sobre o leque, o beijo, as nuvens, o lenço e outros temas que reclamassem apenas o de devaneio literário, como salienta Gilberto Amado.

Não seria de esperar o mesmo de Gilberto Freyre, cujos artigos no Diário de Pernambuco espantavam a Província pelo seu arrojo estilístico. Já aí, nesses artigos, estava o modernista que muitos se esquecem de citar como precursor isolado do Modernismo. Um modernismo já muito gilberteano.

Havia em D. Pedro II singularidades que os historiadores e cronistas oficiais ou convencionais não assinalavam. Uma dessas singularidades, a de ser menino sem infância. Menino quase sem brinquedos. Vestido já como homem público do Império. Príncipe sem ser "pequeno príncipe".

Preparava-se para governar esse menino incompleto, sem infância, sem estórias de reinos encantados, porque o seu reino seria daí a pouco uma herança que, sem discutir a sucessão, não era fácil para o sucessor.

Também o seu governo teria uma cor - a cor cinzenta - que Gilberto Freyre caracteriza como sendo uma atmosfera espiritual e mesmo política, que faria do Paço de S. Cristóvão algo de indeciso no próprio cenário do Império.

O estudo psicológico do Imperador chega a ser espantoso na visualização do conferencista de 1925. Bastar-lhe-ia, se fosse um conferencista comum, citar os historiadores ou - avançando um pouco mais - ler os Anais do Parlamento ou os Jornais da época; e isso seria uma pesquisa valiosa.

O centenário, só por si, era o bastante para uma consagração histórica. Nessas ocasiões o elogio é mais apologético do que crítico. Os grandes mortos nem sempre oferecem uma perspectiva da vida cotidiana e simples. Há sempre uma exaltação que resvala do homem para o super-homem. E é diante de um mito que estamos e não mais da condição humana, cuja fragilidade o Poder não torna tão forte que obscureça no homem - mesmo no grande homem - o que há nele de mais humano nos seus comportamentos. Certos elogios fúnebres - mesmo os de Bossuet - são, às vezes, a superação da morte por uma vida que é super-vida. Como se o poderoso tivesse de ser, por obrigação do seu próprio poder, um homem diferente dos outros.

Um estudo crítico nunca seria a louvação exaltada do homem sem defeitos, fora do tempo e do espaço, envolto em alguma túnica inconsútil.

Essa túnica não envolve D. Pedro II nessa conferência de Gilberto Freyre. Conferência única, até hoje, como celebração de um centenário. E escrita por um jovem de 25 anos, de alcançou na perspectiva da História não um Imperador que tivesse de exaltar, mas um homem que era preciso buscar na infância que não teve, na severidade dos estudos, na atmosfera cinzenta - repita-se - da sua vida e do seu governo, a fazer o eterno rodízio dos Partidos, a exercer o seu Poder Moderador com o lápis que a tradição tornou clássico, e a adornar a sua erudição com o seu hebraico, tão satirizado por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.

Talvez tenha sido um Imperador europeizado; mas ninguém tão brasileiro e tão ardentemente fiel às formas mais ativas e ao mesmo tempo mais sentimentais do Patriotismo. Um Patriotismo que o levou a extremos de bravura cívica na guerra com o Paraguai e a escrever sonetos que, se não honram o poeta, honram o brasileiro.

Governado o Brasil mais com a cartola do que com a coroa e mais como representante da burguesia liberal do século XIX do que de uma dinastia, D. Pedro II realizava aquela "democracia coroada", da qual, na verdade, podia orgulhar-se. Fazia bem o seu oficio do rei, apegado ao Poder Moderador e à concepção majestática da Autoridade, que não deixava de Ter, no curso da História, um suporte pombalino.

Daí os excessos de monarca bragantino quando, nesse ambiente morno do Império, com a Igreja tutelada pelo Estado, viu os Bispos de Olinda e do Pará, Dom Vital e Dom Macedo Costa, traçarem as fronteiras entre o temporal e o espiritual. Soube ser, então, poderoso e até inclemente diante do que considerou insubmissão e desobediência de Bispos - funcionários - público, com os entendeu. E, no entanto, como salienta Gilberto Freyre, os seus conselheiros pareciam se acinzentar diante da murça roxa de Dom Vital.

Para celebrar da maneira mais condigna o sesquicentenário do nascimento do Imperador, o Conselho Estadual de Cultura manda reeditar a famosa conferência de Gilberto Freyre. Em nenhuma parte do Brasil se fará comemoração mais expressiva, pois não há, em síntese, um estudo mais completo da personalidade do Imperador do que essa palavra - já distante e tão próxima - que foi proferida entre livros, como se todos esperassem que ali também estivesse o mais livresco dos monarcas do seu século.

Emerge nessa conferência de 1925, um homem um tanto marcado pelo destino: na aurora da vida não teve infância; e no crepúsculo o que lhe tocou foi o exílio, que ele suportou com exemplar resignação, amando o Brasil como se a sua casaca burguesa de Imperador destronado ainda fosse o manto de tucano.

O Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco dá essa notável contribuição ao sesquicentenário do nascimento de Dom Pedro II: reedita uma conferência que é um perfil jamais igualado do homem e do governante.

Cinqüenta anos depois, a conferência de Gilberto Freyre é um testemunho de que, soube ver no Imperador o homem todo, desde menino educado para governar, sob os cuidados a seu modo maternais de Dadama, até o estadista de tantas lutas, na sua velhice desventurada. Ele todo, diga-se de passagem, um homem que encontrou nos livros uma plácida e quase romântica sabedoria.

Dessa análise poderosa de Gilberto Freyre surge um D. Pedro II mais humano, mais compreensível e mais fraco do que forte. Teria sido um professor se não fosse um Imperador, como chegou a confessar.

E foi uma coisa e a outra. O Governante é um professor quando sabe, como ele soube, ensinar pelo exemplo de honradez pessoa, que nunca lhe faltou.

O elogio - repita-se - não é apologético. Afinal, é a verdade que surge do fundo dos tempos e caminha, como uma sugestão irresistível, na hora de traçar o retrato perfeito e acabado.

Esse retrato está aqui, na conferência de Gilberto Freyre. Ninguém o retocará. Nada há a tirar nem a acrescentar: D. Pedro II volta através de um estudo que não dependeu de uma circunstância, mas da interpretação do modelo que Gilberto Freyre teve diante dos olhos e ao qual podia intimar a falar, porque estava diante do seu Moisés.

Recife, 8 de outubro de 1975

Dom Pedro II – Imperador cinzento de uma terra de sol tropical


Gilberto Freyre

Fonte: FREYRE, Gilberto. Arte, ciência social e sociedade. Recife: Escola de Belas Artes de Pernambuco, 1958. p. 17- 30.

http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/dom_pedro2.htm

A cem anos de distância do dia em que nasceu Dom Pedro II, reunamo-nos em volta do seu nome, não em hirto esforço necrófilo, nem com o senso, todo social e moral, que manda ir de perto e solenemente às missas de defunto - mais animados da alegria intelectual de procurar compreender uma grande vida, dramaticamente ligada à vida do Brasil.

O ambiente, aliás, não pede outra atitude; nem o assunto pedia outro ambiente. O ambiente de uma biblioteca. A sombra dos livros, entre os livros, mais que entre as casacas dos ministros e os decotes das viscondessas, viveu Dom Pedro II; e agora que ele é morto, e passa o centenário do dia em que nasceu, é justo que falemos de sua vida entre os livros que tanto amou. Entre os livros que amou demasiadamente. Entre os livros que no seu palácio recebia, como Pedro I às mulheres: antes dos grandes do Império. Pelo menos foi o que aconteceu ao pastor protestante norte-americano que lhe levou de presente, num simples tílburi, um dicionário de Webster, from an old Manse, de Hawthorne e um Hyperion, de Longfellow: foi recebido antes dos titulares, dos conselheiros, dos diplomatas "en grande tenue".

A cem anos de distância, um morto que nos interessa não precisa da nossa condescendência. Nem da piedade de ninguém. Porque já não é um morto. Mortos são os que morrem nas missas de sétimo dia: n última luz de vela litúrgica que então se apaga; n última palavra convencional de elogio que então se diz entre os parentes de luto.

Ora, Dom Pedro II chega até nós. Uma grande saudade o faz viver. Nunca em torno de um nome de rei foram mais fortes os gritos de "Le Roi est mort; vive le Roi!" Gritos de saudade. Saudade não de um rei, mas, para muitos, do Rei.

À sombra destes livros, e diante de uma figura certo sentido tão viva, falemos sem unção necrófila. Não nos interessa sacrificar em Dom Pedro II seu justo relevo humano para o alongar mística ou piedosamente em anjo, em santo ou em herói. Ele não foi nem santo, nem anjo, nem herói. A querermos exaltá-lo a alturas épicas. O justo é lhe concedermos a glória de mártir. A glória de mártir a esse pobre querido do Dom Pedro que da meninice não recolheu nenhum sabor; nem da mocidade nenhum encanto, tão cedo se abafaram nele todas as alegrias de viver, primeiro sob s sombra da vida de príncipe e logo sob as dobras hieráticas do manto de imperador; a esse pobre querido Dom Pedro cujo cabelo louro se embranqueceu todo e quase de repente na grande dor brasileira da guerra com o Paraguai; e que foi no fim da vida negado e traído como um Rei Lear, a quem não faltasse a auréola dramática das barbas mais tristemente brancas que ainda se viram em rosto de imperador.

Menino mais triste e só que o nascido há cem anos o castelo da Boa Vista, em São Cristóvão, dificilmente se imagina. Alguma Frau Sorge cá do trópico decerto o viu nascer; e sobre ele deitou toda a acidez do seu olho mau. Sob a infância desse mau olhado, quase não brincou nem riu o filho de Pedro I, antes se fez homenzinho aos nove ou dez anos, entre as lições de latim e história sagrada do carmelita pernambucano Frei Pedro de Santa Mariana, as de literatura do marquês de Sapucaí, as de caligrafia de monsieur Boulanger, as de alemão do doutor Shuch, as de francês de monsieur Boiret, as de geografia e história de monsieur Taunay e as de inglês de mister Lucas.

Estava, aliás, nos hábitos do Brasil do século XIX, o de sacrificar a meninice dos meninos à tola vaidade de os fazer prematuramente homens. Viajantes estrangeiros da época - Rendu, Denis, Fletcher e Kidder, Walter Colton - todos destacam esse traço melancólico da vida brasileira. E é de fato um Brasil o de 1830, 40, 50,60, em que as meninas, cedo mães dolorosas, mal experimentam o prazer da meninice. Aos doze anos - a idade da sai comprida de brinquedo - já vestem a sério para ir à missa pelo braço do marido de cartola. Aos quatorze anos - a idade dos bebês de mentira, de plano ou de louça - já os têm de verdade e de carne. E os meninos aos oito anos já são uns indivíduos sombrios; já sabem os nomes dos três inimigos da alguma; já sabem somar, multiplicar, dividir; já declinam em latim. Andam a passo de enterro e de preto, chapéu e roupa de homem. Nos dias de Domingo, de festa e Primeira Comunhão apresentam-se de sobrecasaca preta e calça preta e borzeguins pretos. De luto talvez, da própria meninice.

Isso no caso dos meninos em geral. No caso do filho de Pedro I, multiplique-se tudo por dez ou por cem. A liberdade de brincar - a maior, ou pelo menos a melhor, de todas as liberdades - não a conheceu Dom Pedro II, filho do imperador. Triste e sozinho filho de imperador, quase sem companheiros de brinquedo; sem poder, como os filhos de senhor de engenho, brincar de carrossel nas almanjarras, com os moleques seus leva-pancadas; nem armar arapucas com rodelinhas de banana para apanhar passarinhos; nem tomar banho de rio chupando caju;, sem poder, como os meninos da cidade, empinar papagaio, jogar pião ou comprar ao postigo, rolete de cana ou cocada às negras de tabuleiros. E sem ouvir histórias de carochinha ou bruxedo das pretas velhas de cabeção picado de renda - histórias de mãe d'água e saci. Apenas fábulasd e La Fontaine contadas pelo monsieur Boiret, no seu francês todo ossos de pedagogo oficial.

Não teve a liberdade de menino quem não teria a de homem. Uma meninice sem gosto nenhum de meninice, a Dom Pedro II. Abafada, tristonha, só. Regulamentada nas menores coisas. Às 7 horas da manhã devia levantar-se. Depois fazer sua toilette e rezar, dando graças a Deus. Às 8, almoçava em presença do médico, a quem cumpria examinar a comida e não consentir que ele comesse demais. Descansava até às 9 horas, e estudava desde as 9 até às 11 e meia. Em seguida - aqui o Regulamento do Serviço do Paço abrandava um pouco - podia divertir-se e passear pelo Paço, até 1 e meia da tarde. À 1 e meia devia preparar-se para o jantar, que era às 2 horas. Às 2 em ponto começava o jantar em presença do médico e do camarista e, quando possível, da camareira-mor. Só podia conversar à mesa sobre assuntos científicos ou de beneficência. Depois do jantar - aqui o Regulamento era terrível - não devia saltar, nem se aplicar em coisa alguma, nem, muito menos, dormir. Ãs 4 e meia, ou 5 horas, sendo o dia de sol, podia passear no jardim, devendo recolher-se cedo, antes do cair da noite. Findo o passeio, devia ler livros e "cousas compatíveis com a sua idade e o seu desenvolvimento intelectual, tendendo essa leitura, progressivamente, para assuntos cada vez mais profundos". Às 8 da noite, devia rezar de novo; às 9 e meia ou 10 horas, deitar-se.

Roupas, não podia vestir as que quisesse porque, pelo Regulamento, competia a um seu criado a escolha do vestuário de acordo, com a temperatura do dia. O mesmo quanto aos banhos: a própria temperatura deles, era o médico - por ordem do Regulamento - quem determinava. E vivendo Pedro com suas irmãs, sob o mesmo teto, no Paço de S. Cristóvão, pelo feroz Regulamento só lhe era permitido ir aos aposentos delas, quando já tivessem almoçado.

Não tarda a pesar sobre a cabeça do adolescente fino e franzino, pálido e livresco, criado mais à sombra que ao sol, o peso de uma coroa enorme. Enorme coroa que a mão potente de Diogo Antonio Feijó - Diogo Antonio: o nome parece de romano - acabara de salvar num acre e pungentíssimo esforço, detendo-a, contra a danação demagógica e completando a obra admirável de José Bonifácio.

Curiosa surpresa, a de Pedro II, depois de Pedro I. Depois de Pedro I, todo instinto, todo volúpia de mando, mal sabendo ler, mal sabendo escrever, voz malcriada de capitão de brigue, boca em bico de prognato, bochechas de quem sopra corneta, perfil agudo de sátiro - Pedro II, esquivo não só aos brilhos mais vivos da ação como aos gestos mais galantes do amor; desdenhoso do poder, embora desde novo com algum instinto do mando; voz de menino aos cinquenta anos; rosto de avô aos vinte e cinco, livresco desde os oito; e aos onze ou doze anos mais sabedor de francês, de geografia, de latim, de aritmética que o seu livre e augusto pai.

De surpresa assim está cheia a história: elas têm o encanto de repelir as generalizações das mesdames de Thébes da sociologia, como o idiota de Gustavo Le Bon. Não conheço surpresa maior que a de São Luiz Gonzaga descender de Vincenzo Gonzaga. Depois de Vincenzo, em cuja corte tão voluptuosamente se vive que a comida é aromatizada para estarem sempre as bocas perfumadas para os beijos - Luigi recusando-se, ainda menino, num brinquedo, a beijar à parede a sombra duma menina; e deitando cinza à comida. Dom Pedro II não chegou aos extremos de santo; mas de muita cinza salpicou sua vida e a da corte imperial; e - segundo se diz - fugiu de muita sombra de mulher que teria sido facilmente sua.

Com a Maioridade começou para o Brasil uma época bem caracterizada nas suas tendências e virtudes. No seu cinzento. Espécie de era Vitoriana brasileira, com Dom Pedro projetando sobre a vida nacional uma sombra de governante inglesa fantasiada de imperador.

À sua vida como à da sua corte faltou certo brilliant setting of sin - frase de Walter Pater que não traduzo para não perturbar com ela nenhuma imaginação de adolescente. De modo que se tem hoje a impressão de um processos de acinzentamento, estudando-se o reinado de Pedro II. De cinzento claro, para cinzento escuro. É bem escuro o cinzento da noite histórica de que fala Raul Pompéia: o fim do Império no Brasil, diante do pronunciamento de 15 de novembro. "Um coche negro - diz Pompéia - puxado a passo por dois cavalos que se adiantavam de cabeça baixa; como se dormissem andando. À frente duas senhoras de negro a pé, cobertas de tristes véus, como a buscar caminho para o triste veículo". Uma delas devia ser Frau Sorge.

Dizer-vos que o Segundo Reinado foi no Brasil, pela tirania moral de Pedro II e do seu lápis fatídico - que até ao um tanto boêmio Barão do Rio Branco dificultou a ascensão política - um período melancolicamente virtuoso, isto não hesito. Não é que a virtude não se possa aguçar em alegria artística. Não é que não exista uma estética da virtude como existe uma estética do pecado. Há vidas de santos que chegam a ser tão interessantes como a dos grandes pecadores. Mais interessantes até. São Francisco de Assis, por exemplo, viveu uma vida lírica; e mais sugestiva que de muito aristocrata do pecado.

Mas a estética da virtude dificilmente a conseguem os governantes que se parecem às governantes; ou que pretendem tiranicamente acinzentar em calvinistas os povos que governam. E é o que foi Pedro II com a sua "ditadura da moralidade", com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava. O período de reação Puritana na Inglaterra, por exemplo, é uma quadra tristonha. Dá saudade dos dias de Wolsey com ruge-ruge de sedas, lampejos de púrpura e esplendores de cor, com o vinho a avermelhar de manchas alegres a palidez das tapeçarias, com bois inteiros a assar na cozinha de Christ Church; dá saudade da Merrie England de Henrique I, com brigas de galo cheias de salpicos, de sangue, reunindo em festas a nobreza loura dos castelos; dá saudade dos dias da rainha Elizabeth com o teatro de Shakespeare e a poesia livre.

A tirania moral tem o inconveniente de dar saudade dos próprios excessos do pecado. A Inglaterra sai do período Puritano toda acinzentada para de novo se animar de cores alegres na contra-reação que estabelece, enfim, certo equilíbrio na vida inglesa; e recupera, para a imaginação e para os sentidos, direitos por um momento abafados. Volta a animar a vida inglesa brilliant setting of sin que apenas empalidece sob os véus de viúva da Rainha Victoria; mas não de todo, porque sob Victoria é primeiro ministro Disraeli, com aquele seu rosto recurvoi de polichinelo e os restos daquele seu luxo israelita de vestir-se de cetim e veludo; e filho de Victoria é Eduardo VII; e ainda sob Victoria é que aparece o Yellow Book: outra mancha de cor alegrar os dias de viuvez Vitoriana.

Eu não estoua desejar que a corte de Pedro II tivesse sido escandalosa e cheia de brilhos teatrais e cores vivas d pecado: apenas que tivesse sido mais elegantemente mundana; mais dramática, mais ric de sugestões para a imaginação burguesa e popular do brasileiro. Fala-nos um moralista nas "obscuras virtudes tão raras e tão precisas no lar doméstico quão nocivas à popularidade dos príncipes". Dos príncipes de toda espécie. E o conceito me parece justo, isto é, corresponde à realidade.

Não é que os príncipes devam viver, trabalhar e pecar às claras: nada mais repugnante que essa máxima da ética Positivista. Sob um critério rigidamente moral, pecar às claras será talvez superior a pecar à meia-luz. Mas sob o critério estético-moral, pecar à meia-luz é mais bonito. Pecar e fazer o bem. Nada mais horrível do que o homem que trabalha, dando a todos a impressão de que trabalha. O bonito é trabalhar dando a impressão da mais oriental e mole das preguiças.

Ao Segundo Reinado, no Brasil, talvez tenha faltado essa sugestão não só de pecado como de virtude à meia -luz, que torna tão cara à imaginação popular uma figura de príncipe ou de grande homem. A imaginação brasileira cedo se inteirou de que a vida mais burguesmente insípida se vivia na sua Corte; e desinteressou-se dela.

Pedro II fez-nos na verdade mergulhar no mais inestético dos puritanismos; exagerou-se na tirania moral para falhar na estética ou no ritual do Poder - elemento tão caro ao sentido de beleza de um povo nascido sob o encanto da liturgia da missa, criado entre os esplendores de ouro e prata e os lampejos de roxo e de verde das missões dos padres da S. J.; entre a simbologia viva, dramática, às vezes trágica da Igreja - quimeras, águias, monstros, serpentes, folhas de louro, cardos, entre os azuis do culto da Virgem, à sombra dos baldaquinos, ao ritmo dos gestos vagarosos de padres batizando, casando, abençoando, esconjurando, ajoelhando-se, exaltando Nosso Senhor, louvando no mais doce dos latins o nome de Nossa Senhora - Mater Inviolata, Rosa Mystica, Regina Sacratissimi Rosarii - cantando em voz grave o Adoremus Dominum, fazendo o Pelo-Sinal-da-Santa-Cruz, levando aos doentes Nosso Pai, erguendo o Santíssimo ante os devotos de joelhos, dando-lhes a beijar a ametista, benzendo tachas e fornalhas de engenho.

Povo assim nascido e assim criado não nasceu nem se criou para ver os seus destinos ligados de repente ao cinzento ou ao preto de uma cartola, nasceu e criou-se para ver seus destinos por muito tempo ligado ao ouro vivo de uma coroa. Durante todo o seu período de formação ou de adolescência pelo menos. Para isso o predispôs uma história colonial à parte do conjunto da história americana. Em vez de caudilhos ou de presidentes - um Rei, uma Coroa, um Imperador com aquelas reminiscências do "Imperador do Divino "a que se referiu uma vez, malicioso e arguto, o grande José Bonifácio.

Dom Pedro II foi o primeiro a desdenhar da coroa, e a apresentar-se de sobrecasaca e de cartola preta aos olhos do seu povo, desejoso de um governo não só paternal como majestoso. E a testa da monarquia brasileira, igreja manuelina a pedir missas solenes mais do que sermões moralistas, ele nos dá esta idéia melancólica: a de um pastor protestante a oficiar em catedral católica. Na verdade ele não oficia : o litúrgico lhe parece desprezível. Apenas sermoniza, moraliza, prega - tudo isso mediocremente.

Ramalho Ortigão lamentando em Dom Pedro II o recluso, o especulativo, o refratário, à marcialidade, a sua falta de "brilho vibrante e comunicativo", nos dá este flagrante da vida de corte no Brasil do segundo imperador: "para evitar os solavancos da estrada o corpo diplomático ia ao paço de bonde e seguido pelas carruagens vazias levando os espadins".

No meio de tudo isso - dessas carruagens vazias levando os espadins dos homens de prol - o imperador com vergonha do papo de tucano, que afinal cai no ridículo. O imperador a sair do palácio, a tirar o retrato e a governar o Brasil de cartola burguesa. O imperador a exceder-se em formas cenográficas de liberalismo postiço.

Daí o estado de anomalia detestável em que viveu o Brasil nos últimos anos do Segundo Imperador: majores e tenentes Positivistas - filiados ao sistema filosófico da Ordem e da Autoridade - é que se revoltam contra a Ordem e a Autoridade como se lhes competissem iniciativas políticas. A Pedro Banana - o nome do Imperador nas caricaturas dos jornais - opõem o Marechal de Ferro, cuja imagem de soldado forte, de senhor-de-engenho rústico, de caboclo macho do Norte, corresponde certa tradição brasileira - tradição do homem brasileiro do povo - amiga dos governos de senhores poderoso, de caciques resistentes e astuciosos, de patriarcas duros a ao mesmo tempo paternais no exercício do mando.

Tradição na qual talvez exista algum resíduo masoquista de nossa formação patriarcal, com grande parte da população submetida a senhores, a pais, a avós, a padres, a tios, a capitães-mores. Tradição semelhante à que marcou de tal modo o povo russo - com o qual o nosso se parece sob tantos aspectos - a ponto de seus primeiros chefes marxistas, dos primeiros ditadores do seu operariado revolucionário., terem tomado aspectos patriarcais como os Lenines; ou apelidos que lembram o do nosso Floriano : Marechal de Ferro.

No meio dos livros, Pedro II perdera de vista o Brasil: um Brasil que o queria não cartola, mas de coroa; e marcial, paternal, litúrgico, em relevos de ação. Um Brasil que o queria mais para o ver de cetro, reinando e a cavalo, como um São Jorge de verdade, do que para lhe ouvir os discursos e as frases de censor moral, de Marco Aurélio medíocre, de literato de terceira ordem.

No dia em que a Igreja Católica, pelo seu chefe, fizesse com a sua liturgia o que com a do poder imperial fez no Brasil Pedro II - também a Igreja Católica acabaria desconjuntando-se. Foi dos ritos da Igreja que escreveu Coventry Patmore numa das páginas mais sutis de Religio Poeta: "note one can be destroyed or altered without risk of some unknown loss".

Pedro II não é certo que tenha reinado sem governar, confirmando a célebre definição dos reis castrati do constitucionalismo. Seria antes justo dizer que ele governou sem reinar.

"O Senado, o Conselho de Estado viviam do seu favor, de sua graça"- diz-nos Joaquim Nabuco. E Assis Brasil confirma o depoimento de Nabuco: "a sombra do trono cobria tudo mais". "É ele só - continua Nabuco - quem regula os acessos e dá as garantias". Mas tudo pelo só critério moral. Tudo pelo critério de governante inglesa. E de tanto manejar o lápis azul de censor moral, o falado lápis fatídico, Dom Pedro acaba quase perdendo o jeito de empunhar o cetro. Este, o seu drama - e o drama - ou a tragicomédia? - da Monarquia no Brasil do século XIX : um Brasil predisposto ao governo de um Arqui-Patriarca, cujo palácio fosse uma arqui-Casa-Grande e cuja figura só surgisse aos olhos do povo a cavalo, as esporas de ouro tilintando como as de um Carlos Magno de história de Trancoso.


Pode-se com justiça desejar que Dom Pedro II tivesse sido um monarca, senão de vida mais movimentada, menos moral e filosoficamente preocupado; menos livresco; menos neto de Marco Aurélio; menos voltaireano; menos amigo e admirador de Victor Hugo; menos interessado em fingir que governava um povo livre, segundo o epigrama atribuído a Ferreira Vianna; menos sensível à opinião liberal e literária da Europa a seu respeito; e mais atento às realidades brasileiras; mais dentro do seu momento social e político; mais em dia com a vida de um povo de senhores, aderentes e escravos; mais desdenhoso da opinião européia sobre as condições de um Brasil jovem, desigual, ainda nas primeiras provas tipográficas de sua formação; mais marcial; mais imperador para os olhos dos brasileiros do que para os ouvidos de Gladistone e Victor Hugo; mais litúrgico; mais sensível ao Exército que o desejava marcial, não para promover guerras e sim para assegurar a paz; mais neto de D. Carlota Joaquina; mais sobrinho de D. Miguel; mais leitor de Gama e Castro.

Quando o Príncipe D. Luiz - belo esboço de D. Sebastião, brasileiro a quem a morte não permitiu tomar definido relevo - escreveu em Sob o Cruzeiro do Sul que "o erro principal da Monarquia foi preferir como base de sua autoridade as idéias abstratas aos fundamentos naturais que os ensinamentos do passado lhe poderiam indicar ", mostrou que o erro do seu avô, via-o ele, D. Luiz, clara e profundamente como nenhum crítico da monarquia até então. E como o ponto de vista do Príncipe confluem críticas recentes de Oliveira Lima e do Professor Percy Alvin Martin, da Universidade de Stanford.

Foi exatamente pelo espírito paisano, espécie de calvinismo político a roer-lhe de dentro para fora a majestade, que apodreceu o trono brasileiro: pela sua dependência exclusiva do chamado "prestígio moral" e "intelectual", num país ainda pouco sensível a formas tão altas de prestígio. Daí a observação de um estrangeiro ilustre, contemporâneo do trono - Ramalho Ortigão: "O imperador é um homem bom, na mais larga acepção desta palavra, dotado de todas as grandes e belas qualidades opostas às que deveria Ter o chefe de um estado adolescente, rico, imaginoso, poético, qual o Brasil. Este deveria ser: um rei acumulando a percepção da índole juvenil, impetuosa de seiva, um tanto impaciente e tumultuária das nações americanas, com o sentimento europeu da disciplina, do prestígio e do comando...".

Dom Pedro II começou por Ter a superstição da solução jurídica de que fala, em interessante estudo sobre o Brasil no século XIX, o Sr. Gilberto Amado. E com a superstição da solução jurídica, a do liberalismo burguês que o levou a desprestigiar oportuna e inoportunamente não só o Exército como a nobreza rústica mas plástica - nas mãos de um Pedro II que fosse outro Pedro o Grande - de senhores-de-engenho.

Pedro II como que evitou governar monárquica, patriarcal e brasileiramente o Brasil para o dirigir segundo uma combinação toda sua de "poder pessoal" com conceitos de ideologia liberal, então a irromper dos versos bombásticos de Victor Hugo e dos discursos de Gladstone. Foram os livros - mais uma vez se destaque - que o fizeram perder de vista o Brasil. E livro contra livro, um pronunciamento de majores e tenentes livrescos, professores de matemática e astronomia, é que o expulsa afinal do trono.

A Dom Pedro II faltou mais de uma vez a noção da necessidade de ser brasileiramente tradicionalista contra os excessos burguesmente progressistas da época. A Dom Pedro, e aos seus estadistas. É por isto que as suas casacas todas se acinzentam quando no meio delas aprece - com seus exageros de padre educado na Europa mas também com seus modos de filho de senhor-de-engenho - D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira - esse sim, com alguma coisa de Imperador Divino para os olhos do povo. Em volta do roxo de sua murça, titulares e conselheiros do Império ficam por um instante quase do tamanho de titulares e conselheiros de Eça. Antes de se tornar brasileiramente mártir, seu vulto é o de um herói. Um Dom Quixote vestido de capuchinho.

Conservadores e Liberais são rótulos sem sentido no Brasil de Pedro II. O que quase todos querem, nas chamadas "altas esferas" da política é se excederem no liberalismo burguês que se torna, em todos os sentidos, a Estrada Real. O que todos querem é ver quem chega mais depressa à negação da Tradição e do Paternalismo; ou à sua redução ao mínimo, sem para tal estarmos preparados. A obsessão é a do "Parlamentarismo", do "Constitucionalismo"e do "Liberalismo": tudo com maiúscula. O fato é reconhecido pelo próprio Ruy Barbosa, em discurso pronunciado aos vinte e cinco anos: em favor da eleição direta, no Teatro S. João da Baía a 2 de agosto de 1874. Ao jovem espírito do orador baiano a confusão entre liberais e conservadores se figura, então, anomalia detestável. E recorda, a propósito, o exemplo da Bélgica onde, em 1864, quando um chefe Católico apresentou ao rei um programa de reformas liberais, ou antes, radicais, observou-lhe o monarca: "Tudo isto é muito sensato, é sedutor até; mas se ides apostar com o partido liberal a carreira democrática, aonde iremos parar? ".

Faltou-nos no Brasil quem perguntasse aos conservadores a confundirem-se com o liberalismo dos liberais, aonde iríamos parar na doida corrida liberalista. Era o Imperador, decerto, a quem primeiro cabia senão atitude ortodoxa, de tradicionalista, a de intérprete da tradição brasileira em face dos exageros de imitação do exótico pelos chamados liberais, em face dos exageros de imitação da Europa burguesa e dos Estados Unidos pluto-democráticos por um povo ainda na sua fase rudimentarmente patriarcal. Mas o Imperador - também liberal, voltaireano, admirador das maravilhas norte-americanas, amigo de Victor Hugo - falhou. Fracassou. Concordou. Deixou de ser a voz necessária a favor da tradição brasileira. Deixou de ser o Pai aliado dos Pais-senhores-de-engenho, dos Pais-barões, dos Pais-fazendeiros para ser cúmplice dos Filhos - os bacharéis revoltados contra toda espécie de Tradição. Nada mais típico de sua atitude de extrema transigência que aquela sua fase ao senador Saraiva: "Sr. Saraiva, o senhor sabe que eu nunca fui obstáculo às idéias adiantadas".

Olhando-se hoje o Segundo Império tem-se a impressão de que faltaram-lhe à paisagem política contrastes fortes e definidos. Contrastes de branco e preto. Faltou-lhe à vida o embate de energias divergentes. O liberalismo burguês a quase todos acinzenta numa conciliação bem ao sabor do século. Do século que na própria arte acabaria se esfumando todo nas telas de Whistler; e dizendo com Verlaine: Pas de Couleur, rien que la Nuance; e com Renan, ou não sei que discípulo seu, ser o cinzento a cor da verdade. Do século que de tanto se esbater em cor de rosa e cinza acaba provocando a reação formidável do Expressionismo; e aquele grito jovem e claro de Ernesto Psichari, neto de Renan, exaltando a acre natureza africana pelo definido dos seus contrastes pel sua nenhuma nuance.

Creio que é do grande romântico alemão dos nossos dias - brasileiro, aliás, por um dos costados: Thomas Mann - o conceito de que só há cultura viva quando se verifica o jogo heróico dos contrários. Conceito bem wagneriano. Foi o que mais faltou à política do Brasil de Pedro II: o jogo heróico dos contrários. Sua música foi a de Verdi, melodiosa e maciamente burguesa. Cinzenta. Cor de rosa.

"Governo conservador-progressista e progressista-conservador", disse o Visconde, depois Marquês de Paraná, ao definir a orientação de Dom Pedro II, sobre a qual ele, Paraná, tanto influira: a de acabar com definidas divergências na paisagem política do Império: a de nos favorecer com uma ordem que quase não passava do que alguém já chamou de "tranquilidade pútrida". Sob a aparência de "liberalismo", a menos liberal das situações. Nas palavras de um observador da época - homem arguto e sensível aos degradantes efeitos daquela orientação : "adormeceram as paixões políticas, a ação do governo marchou mais desassombrada de agitações partidárias; mas, por outro lado, a indiferença e o cepticismo começaram a medrar".

Que o Imperador tivesse harmonizado divergências ou equilibrado antagonismos, compreen de-se. Teria sido realmente um poder moderador. Um elemento de coordenação. Teria agido dentro das melhores tradições luso-brasileiras de statemanship. Mas não. Dom Pedro II concorreu para que se apagassem divergências políticas no Brasil, ele próprio dissolvendo-se na corrente mais poderosa que era a de aparente liberalismo, a do bovarismo jurídico, a do europeismo cenográfico. Sob sua influência o Brasil político tornou-se como o Brasil econômico dominado pela monocultur e o Brasil patriarcal dominado pelo sexo masculino: uma vida quase sem o entrechoque de antagonismos criadores e saudáveis. As desvantagens da passividade, da exclusividade, da monotonia sem as compensações sociológicas e estéticas do regime monárquico corajosamente praticado.

Eis o que falta à paisagem política do Brasil de Pedro II: a coexistência de definidas energias divergentes, combatendo-se em igualdade de forças, como irmãos separados, sob o poder monárquico, sob a autoridade patriarcal, sob a figura paternal de um imperador mais do Divino que da Constituição, mais brasileiro que imitação de rei inglês, mais telúrico do que postiço, mais de papo de tucano do que de sobrecasaca Príncipe Alberto.

Chesterton, entre outras virtudes que exalta na Igreja Católica, salienta esta: a de manter intactas, sem as confundir, energias divergentes, tragicamente divergentes até, como o culto da família e o culto da virgindade. O vermelho e o branco. O vermelho vivo e o branco puro. O "jogo heróico dos contrários" de que fala o alemão.

Eis o que faltou à política o Império brasileiro e muito por falta do monarca: o embate de divergências; o sim e o não; energias definidas; uma ortodoxia brasileira mais forte contra um liberalismo europeu que sem contrapeso tornou-se absorvente e afinal, exclusivo, através da revolta de Filhos contra Pais em que Dom Pedro II tomou ostensivamente o lado dos Filhos, deixando o povo brasileiro politicamente sem Pais. Só com um imperador à inglesa: semelhante a uma governante inglesa. Só com uma mãezinha magra e coxa vinda da Itália: a chamada Mão dos Brasileiros.

É bem típica do estado de anomalia detestável a que chegamos - a opinião tradicionalista dissolvida na utópica e falsamente liberal - a maneira por que se fez afinal a lei da Abolição. Diz-se - escreve Oliveira Lima - "que quando o Ministro da Agricultura leu à Câmara dos Deputados a proposta governamental, o entusiasmo foi tal no recinto e nas galerias que ele não ousou ler um segundo artigo fixando uma justa indenização aos donos de escravos, muitos deles reduzidos a precárias circunstâncias". E hoje nos parece espantoso que não houvesse uma voz com a coragem de desdenhar da popularidade e sobrepor o bom senso ao lirismo exagerado de uma hojra de exaltação parlamentar.

É natural que a rústica nobreza de senhores-de-engenho se separasse, como a Igreja - e sobre este ponto se impõe a leitura do recente e agudo trabalho do Sr. Luiz Cedro sobre Dom Vital - do trono que a não prestigiava. E entretanto naquela nobreza de rústicos, um Imperador paternalista poderia Ter aproveitado numa grande força brasileira com qualidades para desenvolver-se em élite. Élite de transição do patriarcado rural para a pequena família, em que a tradição e até a hereditariedade de família conservassem valores que somente ela, élite rural e semi-rural prestigiada e amparada pelo Imperador, poderia Ter conservado no interesse da democracia aristocrática para que o Brasil estava predisposto desde os seus começos.

Bem pitorescos os começos da nobreza de título no Brasil imperial. Titulares de nomes de um sabor muito da terra, arrevesadamente guaranis, alguns. Nomes de rios. Nomes de cachoeiras. Nomes de engenhos. E ouriçados de sílabas que devem Ter sido a tortura dos diplomatas europeus obrigados a pronunciá-las: Baependi, Sepetiba, Cairú, Macaé, Sinimbú, Itaboraí, Itanhaem, Sapucaí, Paranaguá, Abaeté - e o mais curioso de todos, antes caricatura de nome do que mesmo nome: Gê Acaiaba Montezuma de Jequitinhonha.

Homens, na grande maioria, nascidos e criados em engenhos de açúcar, em fazendas de gado e depois de café. Tomam rapé. Limpam-se com lenços de Alcobaça sarapintados de vermelho. Rapam a cara toda como Zacharias ou conservam um colar de barba como Euzebio ou usam suíças israelíticas de banqueiro como Paranhos. Sabem latim, aprendido cm o capelão do engenho, o tio padre ou o mestre regio. Montam elegantemente a cavalo. Os do Norte sabgem manejar a faca de ponta com cabo de prata: como o Marquês do Recife - boa figura de fidalgo rural quase analfabeto. Multiplicam-se biblicamente em filho, crias, moleques, mulatos. Descendem alguns daquela fidalguia a cheia do espírito de aventura que veio para o Brasil de Portugal, da Espanha, de Florença, da Holanda; boêmios da fidalguia que aqui deixaram desbotar, sob o sol da vida livre no trópico e ao requeime de amores irregulares, os azuis e os vermelhos dos seus brasões. Cavalcantis, Camargos, Albuquerques, Mellos, Andradas, Wanderleys.

Dessa nobreza é que um Dom Pedro II mais paternalista e mais teluricamente brasileiro, mais homem de ação, mais identificado com as urgências do momento e ao mesmo tempo com a tradição brasileira, mais resistente ao parlamentarismo burguês, poderia Ter feito uma élite animada de consciência de espécie rusticamente brasileira; impregnada de uma noção clara de responsabilidade nacional diante da época de transição que tínhamos que enfrentar e em face dos interesses estrangeiros empenhados no nosso enfraquecimento e até na nossa fragmentação. Fragmentação que teria se verificado com a República, não fora o impulso adquirido - o impulso de unidade - que vencendo Confederações do Equador e Farroupilhas e Dezessetes, nos transmitiu a Monarquia; que nos comunicou Pedro II, com toda a sua vergonha do papo de tucano para a qual se voltavam com igual respeito brasileiros humildes mas sólidas das mais diversas regiões.

Houve, no parlamento de Pedro II, uma curiosa figura de ortodoxo da realeza efetiva no Brasil. Um romântico da Tradição. Um esquisitão do Bom Senso: Martinho Campos. Martinho Campos: um plantador de Minas Gerais.

Tem o espírito do senhor-de-engenho. Sente que a nobreza obriga; e que uma das obrigações da nobreza patriarcal do Brasil é a de dirigir e proteger a nação ainda em começo, necessitada de cuidados paternais. Por isto é exageradamente anti-abolicionista: "Cá por mim - exclama um dia no Parlamento - sou e serei sempre escravocrata da gema. É dever meu sê-lo... hei de saber cumpri-lo..."

Receava o que de fato sucedeu; o que é hoje reconhecido do ponto de vista econômico como do social e político: que a repentina abolição, muito bonita para efeito de repercussão européia, fosse a desorganização da vida brasileira e a infelicidade dos próprios pretos.

Ao segundo Império faltaram mais Martinho Campos; e a Pedro II um pouco de Martinho Campos, alguma cousa de Frei Vital, outro tanto de Cotegipe. Faltou-lhe a noção exata do lado para o qual deveria Ter pendido, naquela função de bom poder moderador que tanto discutiram os teóricos da época. Faltou-lhe o ânimo, faltaram-lhe as qualidades pessoais para ser o que a tradição do Brasil patriarcal, a necessidade do momento e o próprio futuro brasileiro pediam que ele fosse: um coordenador de divergências necessárias.

Foi - em desacordo com o meio e as tradições ao nosso país - uma figura de burguês liberal feito para governar a Suíça; e hoje nos surge - nestes dias em que o Brasil parece querer gritar para as sombra do seu passado momárquico um "Aqui d'el Rei!" angustioso - como uma das figuras mais dramáticas e até trágicas da nossa história. Trágica pelo seu desajustamento ao meio e ao momento. Trágica pelo excessivo espírito de conciliação e pelo pavor à coexistência de antagonismos na política brasileira, que o amoleceu no Pedro Banana das caricaturas. O momento queria-o mais acre, mais incisivo, mais furo; ele não fez caso do momento e tornou-se o mártir do seu próprio excesso de liberalismo acadêmico, sem profundas raízes nas condições brasileiras; de pacifismo mórbido, com o sacrifício das divergências - repita-se saudáveis de que ele devia ser o coordenador e nunca o destruido.

Fradique Mendes - de quem as pesquisas recentes de Antonio Sardinha mostraram que era no íntimo um anti-liberal extremo - via num imperador moço, são, de bom parecer bem brasileiro - a chance de desembaraçar-se o Brasil do absorvente tapete europeu. Uma linda receita com o nome do remédio em letra de médico. Dom Luiz, neto de Dom Pedro II, teria sido talvez o imperador moço desejado pelo Fradique, diante do fracasso do velho e bom Bragança para quem o tapete europeu foi toda a vida o abrigo com que se defendeu do contacto vivo com o chão cru do trópico. Mas agora que Dom Luiz é morto, como se retificará a história brasileira? Um otimista diria que por um presidencialismo mais acentuado no seus pendores monarquicos; nas suas tendências para a realeza eletiva que Theodoro Roosevelt inaugurou nos Estados Unidos embora sem se desembaraçar de todo dos interesses plutocráticos. Um radical desejará que Dom Sebastião volte. E o sebastianismo não faz mal aos povos: apenas não lhes resolve os problemas.

4 comentários:

Srah Dias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
834hf8h disse...

Triste a história de Dom Pedro II e do Brasil... Grande homem

Blog do tio Pepe disse...

Muito bom!

Blog do tio Pepe disse...

Muito bom!