Reinaldo Azevedo
Revista Veja
07 de maio de 2008
"As críticas ao trabalho da imprensa no caso Isabella carregam, não raro, o rancor e a má-fé dos que pretendem tratar a República como assunto privado, ao abrigo da curiosidade do 'povo', visto como um bando de linchadores, e do escrutínio da opinião pública"
O caso Isabella virou metáfora. Em certos círculos, as notícias sobre o assassinato bárbaro da menina tornaram-se símbolo dos "exageros" cometidos pela "mídia" – empregam essa palavra em vez de "imprensa". Veremos por quê. Não por acaso, os críticos mais severos contam-se entre os esquerdistas em geral e os petistas
Há similaridade entre o que diz Lula sobre o pai e a madrasta, acusados do assassinato, e o que ele próprio já afirmou sobre os mensaleiros, os aloprados e a turma do dossiê da Casa Civil. Fiquemos numa entrevista famosa, concedida a Pedro Bial, no dia 1º de janeiro de 2006, no Fantástico: "Eu, Pedro, baseio a minha vida em achar que todo mundo é inocente até que se prove o contrário. Então, todo mundo merece a chance de ser inocente até que se investigue e se prove que ele é culpado". É preciso lembrar quem estava sendo carregado nesse andor da santidade legalista. Segundo o procurador-geral da República, são quarenta pilantras, muitos deles "quadrilheiros".
Sim, metáfora. As críticas ao trabalho da imprensa no caso Isabella carregam, não raro, o rancor e a má-fé dos que pretendem tratar a República como assunto privado, ao abrigo da curiosidade do "povo", visto como um bando de linchadores, e do escrutínio da opinião pública. Não me espanta esse viés demofóbico da esquerda, essa repulsa ao populacho. Para ela, povo bom é aquele organizado nos ditos "movimentos sociais", a aristocracia militante dos "sem-isso-e-sem-aquilo". Já essa gente sem causa, que cobra justiça nas ruas, o vulgo, merece é chicote. Compreende-se que a demofobia esquerdista tenha resultado, na história, em "democídio" – se me permitem o neologismo.
Estaria eu questionando o princípio da presunção de inocência, descoberto tardiamente pelo PT, só depois de ter chegado ao poder? Eu não! Sou aborrecidamente legalista, a tal ponto que a lei é, para mim, num ambiente democrático, o núcleo da distinção entre direita e esquerda. Esquerdista é quem acredita que a "legitimidade" de uma causa social, que é sempre a causa de um grupo, justifica a transgressão legal. Para um direitista, o desrespeito aos códigos democraticamente estabelecidos é inaceitável e resulta em mais injustiça. Volto ao ponto: a presunção de inocência, se ao abrigo da apuração jornalística e da livre circulação de informações, degenera
Pobre povo! Se, dadas as informações, estivesse impedido de fazer certas deduções, mal conseguiria botar o nariz fora da porta sem ser atropelado. Precisamos atravessar a rua e vemos um carro a distância. O cérebro executa operações que cumprirão algumas leis da física, sejamos ou não colhidos pelo veículo. Mas não ocorre a ninguém declarar a rua território exclusivo dos físicos. E isso não implica dispensar o conhecimento especializado para distinguir o fato das falsas evidências. Seja na cobertura da morte de Isabella, seja na apuração dos desmandos dos petralhas, a imprensa cumpre o seu papel: informar.
Estranho seria um povo que não se comovesse ou não se indignasse. Volta e meia, em meu blog, lembro a frase do dramaturgo latino Terêncio (
A crítica ao comportamento do jornalismo no caso do infanticídio trai a repulsa a um dos aspectos mais virtuosos da democracia: a liberdade de informação. E só por isso, diga-se, emprega-se "mídia", um termo que já virou um fetiche, em vez de "imprensa". A palavra, do inglês "media", ganhou notoriedade nos anos 60. Mundo ocidental afora, os "revolucionários" das universidades resolveram desconstruir os "mass media", os "meios de comunicação de massa", entendidos como severos monstros da dominação ideológica, a serviço, claro, do hediondo capitalismo e da banalização das verdades superiores da humanidade. Para os maoístas de Paris ou para os pós-marxistas de Frankfurt – passando pela ditadura soviética –, a "media" era a expressão da falsa consciência, manipulando as massas e afastando-as de seus reais desígnios. Quais desígnios? Se os esquerdistas descobriram, mantiveram a coisa
Nota: cumpre lembrar que só os comunistas dos países livres se dedicaram à tarefa de desconstruir a "mídia". Os comunistas dos países comunistas estavam empenhados em censurá-la.
"Na década de
Não estou entre aqueles que querem fazer o mundo andar para trás. Boa parte das críticas ao jornalismo contribuiu para que ele aprimorasse seus instrumentos de apuração e reduzisse suas margens de erro, embora a patrulha esquerdopata tenha imprimido para sempre a sua marca politicamente correta na imprensa, sempre tão disposta a condescender com os oprimidos de manual, conforme reza a cartilha do marxismo chulé que empesta as faculdades.
Mas a minha condescendência não alcança a vigarice dos que, sob o pretexto de defender uma imprensa propositiva, menos sensacionalista e mais objetiva, pretendem, de fato, é tê-la sob o cabresto dos interesses do estado, do governo ou de um partido. Na década de
Dada a impossibilidade, o poder e seus esbirros recorrem, então, à intimidação, apontando supostas contradições entre o interesse público e os interesses "da mídia", que passa a ser demonizada como um antro de conspiradores. Fingem querer uma imprensa melhor. O que eles querem é imprensa nenhuma. Que Isabella, sem metáfora, descanse em paz, livre de qualquer exploração oportunista, com seus assassinos na cadeia. A punição de homicidas e ladrões faz do mundo um lugar melhor. E faz de nós homens melhores. Porque estaremos dizendo a nós mesmos: "Somos diferentes deles". E nós somos.
Quanto aos exageros da liberdade de imprensa, vamos coibi-los. Com mais liberdade de imprensa.
"O bom patriota tem a obrigação de defender a nação do governo".
Frase do promotor de justiça americano Jim Garrison (autor do livro 'On the Trail of the Assassins') e interpretado por Kevin Costner no filme 'JFK - A Pergunta que não quer Calar' (cena final do julgamento do envolvido no assassinato de JFK).
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